Os dados mais recentes do 2022, divulgados pelo IBGE, revelam que o automóvel segue como o principal meio de transporte utilizado pelos brasileiros para se deslocar ao trabalho. Segundo o levantamento, 32,3% da população ocupada utiliza o carro em seus trajetos diários, número que reforça o protagonismo do transporte individual motorizado na mobilidade urbana do país. Logo atrás aparecem o ônibus (21,4%), o deslocamento a pé (17,8%) e a motocicleta (16,4%). Juntos, esses quatro meios representam 87,9% de todas as viagens realizadas para o trabalho no território nacional.
Apesar da predominância dos automóveis, o levantamento mostra que o Brasil ainda enfrenta grandes desigualdades regionais e sociais quando o assunto é mobilidade. Enquanto o uso do carro é majoritário em regiões de maior renda e infraestrutura, o deslocamento a pé ou por transporte público ainda é a realidade de milhões de trabalhadores nas periferias urbanas e em áreas rurais. Essa disparidade reflete um histórico de planejamento urbano centrado nas rodovias e na expansão do transporte individual, deixando em segundo plano os sistemas coletivos de alta capacidade, como metrôs e trens.
De acordo com o IBGE, os transportes de massa ainda representam uma fatia mínima dos deslocamentos diários. Somados, metrô e trem correspondem a apenas 1,6% das viagens, enquanto vans e peruas alcançam 1,4%, e os sistemas de BRT (Bus Rapid Transit), apenas 0,3%. Já caminhonetes ou caminhões adaptados respondem por 0,4% das viagens. Esses números evidenciam o descompasso entre o crescimento urbano acelerado e a oferta insuficiente de transporte público estruturado, sobretudo nas regiões metropolitanas mais populosas.
Para Mauro Sérgio Pinheiro, analista da pesquisa, o cenário atual é resultado de um modelo de desenvolvimento que, por décadas, privilegiou o transporte rodoviário e a frota particular. “O Brasil expandiu suas cidades a partir das estradas, sem planejar de forma integrada a mobilidade das pessoas. Isso fez com que o carro se tornasse símbolo de acesso e autonomia, enquanto o transporte público ficou estigmatizado e sobrecarregado”, destacou.
O levantamento, intitulado “Censo 2022: Deslocamentos para trabalho e para estudo – Resultados preliminares da amostra”, mapeou as formas de deslocamento de pessoas com 10 anos ou mais que trabalham ou estudam. Os dados apontam ainda diferenças marcantes entre grupos raciais e níveis de escolaridade. Entre os brancos, o automóvel é o meio predominante, com 42,9% das viagens, seguido pelo ônibus (17,6%). Já entre os pretos, a ordem se inverte: o ônibus lidera com 29,5%, e o carro é utilizado por 21%.
O Censo também revela uma relação direta entre nível de instrução e tipo de transporte. Pessoas com ensino superior ou técnico tendem a usar automóveis, metrôs ou trens, enquanto aquelas com menor escolaridade se deslocam majoritariamente a pé, de bicicleta ou em motocicletas. Essa diferença evidencia que o acesso à mobilidade está profundamente ligado à renda e à oportunidade educacional, reforçando desigualdades estruturais que se refletem na geografia das cidades.
Outra dimensão importante do estudo é o local de trabalho. O levantamento mostra que 35,2 milhões de homens (72%) e 26,7 milhões de mulheres (70,7%) trabalham dentro do próprio município, mas fora de casa. Outros 7,4 milhões de homens (15,1%) e 7,3 milhões de mulheres (19,3%) realizam home office, reflexo das mudanças trazidas pela digitalização e pelo pós-pandemia. Além disso, 9,3 milhões de brasileiros (10,7%) exercem suas atividades em outro município, o que indica um fluxo pendular intenso entre cidades vizinhas.
Esse movimento intermunicipal, segundo o analista Raphael Rocha, reflete a organização desigual do território urbano. Grandes polos econômicos atraem trabalhadores de cidades próximas, gerando longos deslocamentos diários. “A mobilidade intermunicipal é mais intensa nas regiões metropolitanas, onde há concentração de empregos e de infraestrutura. Isso exige políticas públicas voltadas à integração do transporte entre municípios”, explica Rocha.
Curiosamente, o Censo também identificou 32 mil brasileiros que cruzam fronteiras diariamente para trabalhar em outros países. Esse grupo é composto principalmente por moradores de municípios localizados nas faixas de fronteira, especialmente no Sul e Centro-Oeste, onde há maior integração econômica com países vizinhos.
As diferenças regionais são outro destaque do levantamento. O transporte individual motorizado — que inclui automóveis e motocicletas — predomina no Centro-Oeste (58,8%) e no Sul (57,1%), onde a renda média é mais alta e a infraestrutura rodoviária mais desenvolvida. Já nas regiões Norte (28,5%) e Nordeste (26,0%), a motocicleta é o principal meio de deslocamento para o trabalho, refletindo tanto o custo mais acessível do veículo quanto a ausência de alternativas de transporte público em muitas localidades.
O Sudeste, por sua vez, concentra o maior número de deslocamentos por ônibus — 26,6%, o equivalente a 8,3 milhões de trabalhadores. Já o Rio de Janeiro é o estado que mais utiliza o transporte coletivo de forma geral, combinando ônibus (35,8%), BRT (1,8%) e trem/metrô (4,8%). Em contrapartida, estados da região Norte, como Rondônia (4,2%), Roraima (5,9%) e Acre (7,1%), estão entre os que menos dependem do transporte coletivo tradicional.
O Nordeste também se destaca como a região com maior proporção de deslocamentos a pé ou de bicicleta, atingindo 30,4% da população ocupada. No Centro-Oeste, essa proporção cai para 18,9%, e no Norte, cerca de 10% da população utiliza bicicleta como principal meio de transporte. Quase um quarto dos nordestinos (23,5%) vai a pé para o trabalho, revelando não apenas hábitos culturais, mas também limitações de acesso a modais motorizados.
Outro ponto analisado pelo Censo é o tempo de deslocamento entre casa e trabalho, um dos principais indicadores da qualidade de vida urbana. Mais da metade dos trabalhadores brasileiros (56,8%) leva entre 6 minutos e meia hora para chegar ao trabalho — cerca de 40 milhões de pessoas. Entretanto, 1,3 milhão enfrenta viagens superiores a duas horas diárias, geralmente nas grandes metrópoles.
As diferenças raciais também aparecem nesse recorte: 13,9% dos pretos e 11% dos pardos gastam entre uma e duas horas para chegar ao trabalho, contra 8,9% dos brancos. Já nas viagens mais curtas, de até meia hora, a proporção de brancos (58,5%) supera a de pretos (51%), uma diferença de 7,5 pontos percentuais. Esses dados reforçam o impacto da desigualdade urbana sobre o tempo e o custo da mobilidade no país.
Nas 15 principais metrópoles brasileiras, as diferenças são notáveis. Florianópolis (SC), Goiânia (GO) e Porto Alegre (RS) têm as maiores proporções de pessoas que levam até 30 minutos no trajeto ao trabalho. Já Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Manaus (AM) concentram as maiores proporções de deslocamentos acima de meia hora, chegando a ultrapassar uma hora nas áreas mais periféricas e populosas.
Especialistas em mobilidade urbana apontam que esses resultados reforçam a necessidade de políticas públicas que integrem planejamento urbano, habitação e transporte. A dependência do carro particular e a precariedade dos transportes coletivos aumentam os congestionamentos, elevam a poluição e reduzem a produtividade econômica. “A mobilidade sustentável precisa ser encarada como parte da política social, e não apenas de infraestrutura”, avalia a urbanista Carla Menezes.
Os números do Censo 2022 mostram que o carro continua sendo o protagonista da mobilidade brasileira, mas também evidenciam os desafios de um modelo urbano que privilegia o transporte individual em detrimento do coletivo. Com o crescimento das cidades, o aumento do custo de vida e a necessidade de reduzir emissões, o país precisará investir com urgência em transporte público de qualidade, ciclovias seguras e integração metropolitana.
Mais do que uma questão de escolha, o modo como os brasileiros se deslocam reflete a estrutura social, econômica e territorial do país. Enquanto o carro representa conforto e status para alguns, ele ainda simboliza distância e exclusão para muitos outros. O futuro da mobilidade no Brasil dependerá, portanto, da capacidade de transformar essa realidade em movimento coletivo, inclusivo e sustentável.